Em entrevista à Pública, Marília Closs explica a tentativa de golpe no país vizinho e o revanchismo nas Forças Armadas
Por Andrea DiP, Clarissa Levy, Ricardo Terto, Stela Diogo | Colaboração: Ana Alice de Lima
Em 26 de junho passado, tanques atravessavam a praça Murillo, sede dos poderes Executivo e Legislativo da Bolívia. As imagens de soldados adentrando o palácio do governo chocaram o mundo. Mesmo fracassada, a tentativa de golpe no país vizinho, comandada pelo ex-general Juan José Zúñiga, ressalta a instabilidade política na região.
O evento remonta, de certa forma, ao golpe militar e policial de 2019, que resultou na renúncia do então presidente Evo Morales, que estava no poder desde 2006. Após as eleições presidenciais, protestos massivos eclodiram em todo o país, com manifestantes exigindo a anulação das eleições e a saída de Morales, que à época já perdera o apoio das forças de segurança.
Em entrevista ao Pauta Pública, a cientista política e pesquisadora do Observatório Político Sul-Americano (OPSA) Marília Closs avalia o último movimento militar como uma “ressaca do golpismo”, um evento “peculiar”, visto que não há um fenômeno político em construção. Haveria, na realidade, um “revanchismo” por parte de Zúñiga, recém-demitido da condição de chefe do Exército por suas declarações antidemocráticas contra Morales e a favor de Arce. Sem apoio do chefe de Estado, “Zúñiga se colocou com ressentimento tentando bater de frente com quem em outro momento foi leal”, diz.
Para Closs, a insatisfação política e econômica na região é fomentada também pela fragmentação do partido do atual presidente e pela dificuldade de Arce em implementar suas políticas devido à falta de orçamento.
Leia os principais pontos da entrevista e ouça o podcast completo abaixo.
EP 127 O que gerou a tentativa de golpe na Bolívia? – com Marília Closs
[Clarissa Levy] No dia 26 de junho, a Bolívia viveu mais uma tentativa de golpe de Estado. Como você avalia essa situação? E o que impediu esse movimento dos militares?
Essa é uma daquelas situações que podemos interpretar a partir de diferentes formas. É até bom falar agora, que já passaram alguns dias. É um processo que, na minha avaliação, ainda é difícil de ser compreendido; porque ele é bizarro de diversas formas.
É um caso relativamente peculiar da política boliviana, porque dependeu muito da vontade do general Juan José Zúñiga e do cenário político que permitiu que houvesse a oportunidade para essa figura entrar em um tanque e tentar arrombar o palácio presidencial. Há uma estrutura, uma oportunidade política, mas também a própria decisão, cuja análise é de maior complexidade.
Como chegamos a esse cenário e analisamos o que está acontecendo? Em primeiro lugar, qualquer análise do cenário político boliviano hoje precisa passar por 2019. Naquele ano, a Bolívia passou por um golpe de Estado efetivamente. Um golpe que foi militar e policial e contou com um componente civil armado.
O golpe de 2019 veio depois da reeleição do governo de Evo Morales, do partido Movimento ao Socialismo. Após 11 meses do golpe de Estado, o partido do ex-presidente retornou ao poder eleito de forma democrática. Eu avalio o que ocorreu no dia 26 de junho como um sentimento de ressaca do golpismo. Uso essa expressão porque acho que ela demonstra bem que não é um fenômeno político em construção, não é simplesmente um fenômeno acabado, mas que está, sim, inserido nessa dinâmica.
Esse é o primeiro elemento, que não explica tudo, mas está presente. O segundo elemento que é importante sinalizar é a instabilidade política e econômica que o país vem vivendo. A Bolívia, em primeiro lugar, vive uma crise institucional profunda. Isso reflete no Parlamento, que está fragmentado, e no governo de Luis Arce, que não consegue avançar na execução de suas políticas públicas como havia planejado. Isso por falta de orçamento, outro componente da crise econômica, mas também pela divisão em seu partido.
O partido do presidente, Movimento ao Socialismo, está dividido em dois grupos. De um lado, os setores arcistas, ligados ao presidente Luis Arce, e os setores evistas, ligados ao ex-presidente Evo Morales. Não estou falando que a divisão do partido define toda a crise política e institucional, pelo contrário. Porém esse é um componente importante, pois até então se tinha um presidente à frente de um governo paralisado com um grau de imobilidade muito grande, sem capacidade de executar suas funções políticas.
O presidente, em alguma medida, era visto como fraco por alguns setores, isso é importante. A Bolívia vive uma crise institucional e econômica, isso não é qualquer coisa. Nos últimos anos, principalmente no período de 2010, a Bolívia não passou por grandes crises, diferente dos outros países da América Latina. O país vinha com números importantes em termos de crescimento econômico, de diminuição de desigualdade e execução de políticas públicas no combate à extrema pobreza.
O que temos visto nesses últimos anos, sobretudo nos últimos meses, é a intensificação de uma crise econômica com aumento da inflação, crise de divisas, falta de dólares no país – e agora, nos últimos dias, a falta de combustível, que torna a coisa muito mais latente.
No início do dia 25 de junho, o então general Zúñiga, que protagonizou as cenas que vimos no dia 26, foi demitido pelo presidente Luis Arce. Zúñiga foi demitido da condição de chefe do Exército, mas não foi imediatamente substituído. O general foi demitido porque já vinha dando uma série de declarações de caráter pouquíssimo democrático contra o ex-presidente Evo Morales. Ele tinha se colocado de forma muito leal ao lado do atual presidente Luis Arce nos últimos meses, afirmando que a postura de Evo Morales era inadmissível. Mas ele subiu demasiado o tom e chegou em nível incompatível com o estado democrático de direito e plurinacional da Bolívia.
No dia 26, Zúñiga foi a liderança principal das cenas que vimos acontecer. Na minha perspectiva, nesse cenário de instabilidade política, ele se colocou com ressentimento tentando bater de frente com quem em outro momento foi leal, achando que o governo de Luis Arce iria recuar. Naquele momento, a demanda do ex-general não foi a deposição do presidente Arce, mas a destituição de seus ministros.
Porém o contingente que respondeu a isso foi pequeno. Não foi o suficiente para levar adiante um golpe de Estado. E ao mesmo tempo a postura de Luis Arce foi não aceitar, porque em alguma medida existia uma relação, ali, de lealdade política entre ele e Evo Morales anteriormente colocada.
Há, também, o crescimento de campos de extrema direita, que participaram do golpe de 2019 e que têm uma relação de pouco ou nenhum respeito com as regras da democracia.
[Clarissa Levy] A Bolívia possui um histórico de insurgências populares bastante fortes e transformadoras nas últimas décadas, destacando-se na América Latina. Destaca-se a Guerra do Gás, uma mobilização popular massiva pela nacionalização do gás que sacudiu o país e definiu novos rumos para a política, com o movimento indígena impondo derrotas a um presidente neoliberal. Posteriormente, veio a Constituição plurinacional, e observou-se também um aumento na população que se identifica como indígena. Marília, como você avalia as heranças desses movimentos de luta no contexto atual?
Essa é uma pergunta superimportante, porque eu acho que temos que olhar para o processo não só de mobilização, mas de organização popular na Bolívia, que é muito interessante e tem muito a nos dizer. Trouxe os dois termos juntos porque eu estive recentemente na Bolívia fazendo um trabalho de campo para o meu doutorado, e muitas vezes me referia a movimentos populares e eles diziam “não é movimento, é organização popular”.
A diferenciação dos termos é quase como se houvesse a compreensão de que eles transitaram da condição de movimento para organização porque assumiram o Estado. Ao analisar o que foi a Assembleia Constituinte da Bolívia, que teve como resultado a Constituição Política de 2009, é muito interessante.
Foi ali o momento de abertura de horizontes. Em um trecho que abre a Constituição Política boliviana, se diz: “Olhou-se para o que significava a República e deixou-se para trás”. Deixou-se para trás o Estado colonial e neoliberal para a construção de um novo modelo. A plurinacionalidade é uma construção política muito interessante. Porque é o reconhecimento que não se trata de uma nação, mas sim de um Estado construído por diversas nações.
Isso é reconhecer que existem múltiplas culturas, mas, além disso, porque a Constituição Política boliviana reconhece outras cosmovisões [modo particular de reconhecer o mundo] e cosmogonias [maneira de explicar como o universo surgiu], reconhece o componente coletivo como sujeito de direito.
Isso deixou diversos problemas, de forma alguma eu acho que conseguimos garantir que a Constituição plurinacional seja cumprida. Mas, ainda assim, há a abertura de novos horizontes políticos. Ali se construiu tecnologias políticas, baseadas nas organizações populares, principalmente ao redor do pacto de unidade e da estrutura do movimento socialista como um todo. Eles têm consigo o partido – Movimento ao Socialismo –, mas tem um instrumento político ao redor.
Acho que essa experiência ainda está sendo levada adiante, o processo de câmbio – como eles gostam de chamar – teve resultados principalmente ao longo do primeiro e segundo governo Evo Morales. Há a promoção de uma democracia radical participativa no que diz respeito ao combate à pobreza e desigualdade e que enfrenta desde 2016 dificuldades, com diminuição dos ganhos populares.
É um processo que está encontrando seus limites. É como se tivesse chegado no limite de sua criatividade política, e tem que se renovar para conseguir seguir adiante. Esse processo esbarrou nos limites políticos e econômicos porque seus ganhos – inclusive em termos de execução de políticas públicas – dependeram muito da extração e exportação do gás natural.
Isso o fez encontrar seu limite ecológico e econômico, que precisa garantir que a renda do Estado siga fluindo e não consegue. Há uma limitação social em termos de organização popular, uma desestruturação da metodologia que havia sido anteriormente montada, mas que tem muito a dizer para o mundo.
[Clarissa Levy] Marília, muito tem se falado sobre os interesses geopolíticos das elites locais e internacionais nesse processo de instabilidade política da Bolívia, pensando que esse é um país que detém uma das maiores reservas de lítio no mundo. Se fala, inclusive, sobre o envolvimento do bilionário Elon Musk no golpe de 2019. Sobre esse interesse das elites, o que há de significativo, além de elucubrações sobre o assunto?
Qualquer análise sobre a Bolívia está atravessada pela questão dos recursos naturais. Em outro momento era o gás natural, hoje em dia é o lítio, um minério estratégico no que diz respeito à transição energética a nível global. Os recursos naturais na Bolívia são estruturantes para o processo político.
Um exemplo é o processo de construção do partido Movimento ao Socialismo, a Guerra do Gás e a Guerra da Água. Essa foi a guerra pela nacionalização dos recursos naturais, a garantia da não privatização e a soberania popular sobre esses recursos. Isso foi estruturante para o processo político boliviano. Naturalmente, tudo isso é atravessado pela geopolítica.
Inclusive, se olharmos a formação política de alguns atores importantes para o processo político boliviano, como os sindicatos de produção da folha de coca. Essa foi a escola de formação do ex-presidente Evo Morales. O ex-presidente foi produtor de coca, e essa é uma formação política muito internacionalista. Tem a antipatia ao Norte global, aos Estados Unidos e ao imperialismo, que é uma de suas bases.
Naturalmente, os processos políticos bolivianos passam pela análise dos recursos naturais, do seu papel na economia e na política do país, na relação com os interesses estrangeiros e imperialistas. No ano de 2019, isso foi muito visível, já temos a documentação no que diz respeito à participação de atores externos.
Ao relembrar o golpe de Estado de 2019, o reconhecimento por parte do governo golpista foi imediato. Diversos países reconheceram esse governo, e o que aconteceu dias atrás é muito diferente. Não vejo relação com interesses externos, pelo menos não de imediato.
Naturalmente, vai ter uma disputa geopolítica, interesses do Norte global em cima dos recursos naturais da Bolívia. Mas esse processo político em específico, não vejo relação. Acho que ele está muito mais ligado à dinâmica interna que conversamos e à crise política que o país vem atravessando.
Créditos de imagens
Reportagem originalmente publicada na Agência Pública